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sábado, 20 de fevereiro de 2010

RELATOS DE (PÓS) CARNAVAL - Por que no Ilê não (deveria) sai(r) branco

O Ilê surgiu com a proposta de dar uma resposta aos blocos carnavalesco que não permitiam que negros participassem de seus blocos. No tempo das mortalhas e mamãe-sacodes pra trás pedia-se, inclusive, foto para associar-se aos blocos e cada "ficha" passava por avaliação a fim de se escolher quem podia e quem não podia entrar em determinada agremiação. 
Para além disso, e principalmente, o Ilê e outros blocos afros surgiram para elevar a estética corporal e cultural dos negros em diáspora jogados aqui nesse grande quintal de América. Portanto, se é pra falar e mostrar estética e cultura Afro, nada mais justo que nós mesmos o façamos. Afinal, nós não precisamos passar procuração pra branco nenhum, como se já não bastassem as indevidas apropriações que Danielas Mercurys e Cia Ltda fazem por ai.

Se quiser curtir cultura afro, é só descer pra Barra que nossa amada Dani diz que a Cor dessa cidade é ela, o canto dessa cidade é dela e ninguém disse o contrário. Se quiser curtir candomblé elétrico, você também pode ir reverenciar Oyá chamando egun na rua... "oyá te te...oyá te te, oyá.."
Assistimos Chiclete, Ivete, Asa e tudo o mais da pipoca, por que vocês não podem assistir o Ilê do lado de fora também? A gente sente os empurrões o tempo todo e vocês não podem?!
Não sai branco no Ilê por que se a gente dá o dedo, vocês tomam o corpo, os turbantes, os tambores e o resto todo.

Cada um no seu cada um, deixe o cada um dos outros. Já chega de apropriação da nossa cultura.
Agradecemos muito a reverência de vocês ao que produzimos, mas antes de reverenciar, vocês vaiaram bastante e agora que há uma possibilidade de rentabilidade, também não dá pra passarmos para as suas mãos.

Além disso, apesar de todos os ganhos de espaços que tivemos, nossa cultura ainda é tido como exótica. E nossas roupas coloridas e turbantes enormes não são fantasias de carnaval de marchinha pra tirar foto e achar graça no dia seguinte. Nossa roupa é "a simbolização do negro africano", é o resgate da nossa ancestralidade e é a repatriação que não pudemos fazer adentrando navios (ou aviões) de volta pra África. É a repatriação no nosso coração palpitante e nossas negras peles arrepiadas, o resgate da musicalidade africana nos tambores afro-brasileiros.

Certamente qualquer branco que leia tudo isso achei que há um tom muito passional para falar de roupas coloridas. Se é isso que você sente, é justamente por isso que você não pode sair no Ilê. Por que os pretos sabem do que estou falando e é isso que o fazem pertencentes ao tapete negro na avenida. Pertencimento que branco nenhum sente nem vai sentir. Se você entende e sente isso, mesmo tendo pele clara: hora de acordar e despertar pra sua identidade.

Só pra ficar mais elucidativo, vamos rememorar aqui o Gandhy. Olhe quanto filho-de-papai desce de seus apartamentos da Graça pra vestir a roupa branca e "pegar mulher" trocando colar por beijo??
O tapete branco aumentou, mas a essência tá se perdendo por causa deles, os brancos que não sabem nem por que foi que o Gandhy surgiu e enchem o pescoço de diloguns e monjilós brancos e azuis comprados em feiras misturados aos colares profanos pra trocar por beijo. Pergunte a algum deles o que é um Padê pra se perceber como não tem dimensão do que é a história daqueles antigos associados/fundadores. Ninguém vai lá dar de comer a Exu e a avenida vem trazendo a cada ano um número maior de corpos inflados a bombas em busca de desordem e Elegbara não deixa por menos: o tapete branco está a todo tempo sendo manchado de sangue.

Se querem mais exemplos, vamos ver o que aconteceu com o Comanche. Confesso que não acompanhei como se deu a história e os desdobramentos de desgastes da Associação, mas fiquei estarrecida ao ver o trio passando com uma banda de pagode e 3 mulheres de tanguinhas "todas enfiadas" simbolizando o povo indígena, mas precisamente, os Comanches. Acho que me deu até uma ponta de ciúmes ao vê-las quebrando até o chão, queria que isso ficasse só pra mim e mais umas dezenas que mulheres que não precisam representar a cultura indígena no carnaval.

Isso tudo mostra o quanto é difícil resistir culturalmente no pseudo-carnaval-da-diversidade. No Ilê não sair branco é também mecanismo de defesa e, sobretudo, resistência. 
No carnaval do Ouro Negro, a preciosidade é de Aluvião.

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