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domingo, 17 de janeiro de 2010

E quem é mais militante que ele?

Dormi pensando naquela imagem, a imagem de meu velho pai. Aquela pessoa por quem durante muito tempo não sabia o que sentia, mas acho que não sentia nada… a indiferença.
De repente vi bulinar aqui dentro um amor que não sabia que sentia ou talvez tenha surgido agora, por que é forte como nunca tinha sentido antes por ele. Talvez o orgulho e a insistência dele em um bom relacionamento tenham fomentado isso. Não sei ao certo, mas o fato é que é isso: um amor muito grande. Talvez isso causasse estranheza em qualquer pessoa posto que amor paterno é quase sempre natural e coloco o “quase” por que eu mesma já estou nessa exceção.
Só sei que ontem acordei feliz e tranquila como uns bons banhos de folhas e outros ebós têm me permitido ficar. Me planejei toda e, nos meus planos, não ficou de fora a ida ao Shopping comprar um presente lindo para meu pai que há anos não presenteio. E apesar de parecer normal, tendo em vista ser o aniversário dele, se tratando de nós dois, não é. Isso por que, sendo de veneta como só eu sei ser, só dou presentes a quem quero, quando quero e se quiser muito. O que acaba me fazendo ir a aniversários de familiares de mãos vazias e, num domingo qualquer de agosto, aparecer na casa de uma prima com um perfume que achei que seria a cara dela, mesmo seu aniversário sendo em janeiro. (e talvez em janeiro eu chegue de mãos vazia!!!)
Enfim, programação feita e cumprida, lá vou eu e meus contreguns pra evitar carregos alheios e um belo presente em mãos. Encontro irmãos, tios, primos, meio mundo de parentes que falam comigo como se eu fosse velha conhecida e ainda dizem sentir saudade. Fico feliz, mesmo sabendo que metade é falsidade e a outra é loucura. Mas eu gosto, gosto do clima familiar (que inclui, obviamente, a já citada falsidade), gosto daquele pagodão rolando no som, homens, mulheres, crianças e as véias fogosas todas quebrando até o chão. Uma delícia!!!
Saí de lá a contra-gosto, por causa do horário e pela falta de um carro que me atormenta. Queria ter ficado pra assistir mais um pouco daquele sorriso cansado de meu pai que, mesmo fadigado, não conseguia esconder o contentamento em me ver envolvida com todos. Por trás, algums outros motivos dignos da mais plena felicidade.
Espero que ele tenha feito essa reflexão, mas acho que não o fez: o fato é que lá, diante de mim, em meio ao pagodão das véias fogosas, estava um homem completando 50 anos, com 6 filhos que não foram perdidos pela marginalidade, nem para uma bala achada de algum revólver policial, com um diploma de Bacharel em Direito em mãos e às vespera de fazer sua prova da OAB. Ali não estava só aquele Geraldo, meu pai e que eu tive diversos impasses durante os 21 anos de minha vida. Ali estava o homem preto da comunidade de itapuã, que subia e descia descalço para a praia, que tem 5 irmãos que alcançaram, no máximo, o ensino médio. Ali está o homem que cresceu com os primos de milhares de graus que nunca tiveram nenhuma perspectiva de adentrar a Academia por que sequer têm a verdadeira noção do que aquilo significa, qual sua importância ou razão de ser e até acham que aquilo não é pra eles: preferem suas redes de pesca, suas barracas de praia, seus subempregos e ai se vai a perpetuação da marginalização dos nosso negros na sociedade dos diplomados brancos.
Um homem negro de 50 anos estar vivo, por si só, já é grande motivo de contentamento diante das intempéries pelas quais nossos negros e negras têm passado, sempre achando quem lhe aponte o dedo, senão uma arma.
E um homem negro, aos 50 anos conseguir realizar seu sonho de ser Advogado é de se tomar por referência, inclusive por que, ele esteve na vanguarda de seu tempo já pelo simples fato de ter sonhado com isso e mais ainda por ter percebido que essa podia ser uma realidade palpável.
Mas ninguém mais precisa toma-lo como referência por que ele já o é para todos aqueles que estiveram do seu lado na boêmia juvenil pelos bares de Itapuã, para seus irmãos, seus sobrinhos, filhos e até seu neto de 2 anos (que, no tempo certo, vai entender a dimensão disso).
E no final de tudo, ele é mais militante do que qualquer delegado das plenárias do CONNEB, do que qualquer conferencista do CONSEG, do que todos os secretários e ministros que passaram pela SEMUR, SEPROMI e SEPPIR. Isso por que foi ele quem abriu o universo de possibilidades de todas aquelas pessoas com quem tanto ele subiu e desceu e estavam ali naquele pagodão bebendo, não o seu defunto, mas sua vitória, sua satisfação, o novo homem que se tornou, com direito a beca, colação de grau, anel no dedo e choro, mesmo tendo adquirido o hábito da leitura lendo jornais velhos achados na feirinha de itapuã com seu peculiar cheiro de peixe e mar.
Subimos e descemos discutindo tudo que achamos pertinente e nos achamos grandes militantes, mas mal sabemos qe os militantes de verdade estão ali do lado, na labuta, pra sair de algumas estatísticas de mortalidade, violência, pobreza, miserabilidade, analfabetismo, sub e desemprego para entrar nas estatística que tanto discutimos nos GTS de nossos infidáveis encontros e conferência.
Em homenagem a meu pai: José Geraldo Ramos, da comunidade de itapuã, 50 anos, bacharel em Direito, pai de 6 filhos vivos e sem passagens na polícia.
In memorian a minha mãe: Gildélia Batista Pires, da comunidade de Castelo Branco que a vida foi ceifada pelo destino enfadonho, mas que foi, durante os mais de 20 anos de relacionamento, a mulher negra que militou mais do que meu pai e, inclusive, também é grande responsável pelo se sucesso, mas que não teve tempo de escrever seu pedacinho na história.

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