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domingo, 26 de dezembro de 2010

Todo final de ano merece uma reflexão para não deixarmos de ser clichês.

Não sei o que acontece conosco quando chega o final do ano, o peito enche de ar, a cabeça enche de idéias, o coração se enche de esperança. É como se tudo de ruim que está acontecendo no mundo desaparecesse só porque um ano está acabando e outro está chegando. Parece até que todos os males que aconteceram se restringem ao “ano-velho” e no “ano-novo” serão apenas maravilhas.

Apesar dessas pieguices, pra não dizer idioticices, eu gosto da festa, diferentemente do Natal. O “nascimento do Menino Jesus” pouco me importa. Certamente a maioria que me chamaria de herege, mas o que estou dizendo é o que todos fazem inconscientemente.
Todo ano, no dia 25 de dezembro, quem lembra que ali está se comemorando o “ Nascimento do Filho de Deus”? Assim como eu, POUCO SE IMPORTAM!!!
O ápice da noite se concentra na troca de presentes que precede a farta ceia. Então...quem fica pensando nas dores do parto de Maria depois de se lambuzarem no peru (com ou sem o trocadilho mais usado no Natal), quem lembra da parideira virgem?
Aaaaaahhhh....E ai? A herege ainda sou eu? Se eu fosse cristã, poderia até estar pecando, mas não o estaria sozinha. 
Graças a Ogum e todo o panteão africano, não vivo de pecados e suas consequentes redenções.
Vivo de amor, força, fé e (PARA MIM) a mais linda das espiritualidades e todo dia é dia dos meus deuses: no meu orí, no meu ocan e na minha carne, vibrando, gritando e dançando.
No meu calendário Deuses nascem todos os dias em algum runcó e, portanto, todo dia é dia de fé, fartura, festa, amor ao próximo e a nós mesmos.

Um beijo pra você que hoje, dia 26, ainda está de barriga cheia, mas não necessariamente com a espiritualidade inteira.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Da série: não é meu, mas podia ser!

LIBAÇÃO - ELISA LUCINDA

É do nascedouro da vida a grandeza.
É da sua natureza a fartura
a ploriferação
os cromossomiais encontros,
os brotos os processos caules,
os processos sementes
os processos troncos,
os processos flores,
são suas mais finas dores

As conseqüências cachos,
as conseqüências leite,
as conseqüências folhas
as conseqüências frutos,
são suas cores mais belas

É da substância do átomo
ser partível produtivo ativo e gerador
Tudo é no seu âmago e início,
patrício da riqueza, solstício da realeza

É da vocação da vida a beleza
e a nós cabe não diminuí-la, não roê-la
com nossos minúsculos gestos ratos
nossos fatos apinhados de pequenezas,
cabe a nós enchê-la,
cheio que é o seu princípio

Todo vazio é grávido desse benevolente risco
todo presente é guarnecido
do estado potencial de futuro

Peço ao ano-novo
aos deuses do calendário
aos orixás das transformações:
nos livrem do infértil da ninharia
nos protejam da vaidade burra
da vaidade "minha" desumana sozinha
Nos livrem da ânsia voraz
daquilo que ao nos aumentar
nos amesquinha.

A vida não tem ensaio
mas tem novas chances

Viva a burilação eterna, a possibilidade:
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores

Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão
!

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ode Eledá

Não sei se quero falar de mim ou falar de Ogum. 
Se bem que por esses tempos, e até a eternidade, não sei mais se falar de mim é possível sem falar de Ogum. 
Por mais piegas que seja, não tem como dizer diferente senão que Ogum é minha vida. 
Se não fosse, vida era que eu não teria: seria sopro, pó, rastro, menos eu viva.
Ogum é o homem que domina os caminhos, o ferro e minha vida a ferro e fogo. 
Fogo de Oyá, a única que carregou sua coroa no reinado de Irê. 
Ela, bela Oyá, a que guerreia com a elegância de uma rainha mesmo sendo búfalo.
De ser de Ogum e ter Oyá, todo caminho deixa de ser penar pra ser a brisa do contentamento, o sorriso da luta vitoriosa, do amor de unhas, carnes, dentes e olhos nos olhos.
Assim como nenhum ferro é forjado sem o fogo, apesar de não ser Oyá, eu não sou força, fé e amor sem o agboró da minha vida.
Ogum, eu não te amo, eu sou só esse amor por você!

De presente: PALAVRAS

Para Gabriela:
Eu a vi. Por instantes não reconheci. Está diferente. É diferente. Vontade de um abraço. Parece, agora, acolher. Não é mais ela. Toda linda. Toda branca. Ela é preta. Preta que ela é bonita. Grandeza no seu momento vivido. Penso nela. Penso no momento. Apenas grandeza. Beleza. Momento dela. Se antes a perguntava era: " Iansã cadê Ogum?". A resposta, nela, reside. Ogum é ela. Plena. Pleno. Não mais no mar. Ogum nela está.

sábado, 13 de novembro de 2010

Avisa lá que eu tô voltando!!!

Depois de mais de 2 meses sem escrever uma linhazinha sequer, eis que estou de volta. Isso não signfica que postarei frequentemente e sim que tentarei fazê-lo. rsrs...
Estou voltando feliz e renovada, com boas novas. E a mais nova e mais gostosa é o depósito de minha monografia sobre Ações Afirmativas. Enfim, conclui! Só falta a defesa na banca cuja data deverá ser divulgada na próxima semana.
Minha felicidade não é simplesmente pelo término na monografia, pelo alívio de tê-la conseguido concluir embora isso seja motivo suficiente pra pulos e mais pulos. Mas minha felicidade é em perceber que ao estudar para desenvolver meu tema, consegui vislumbrar outras perspectivas para a população negra desse quintal afro chamado Brasil.
Com o tempo, pretendo postar partes do meu trabalho com as principais conclusões a que cheguei com ele. É certo que algumas conclusões são óbvias, mas essa obviedade está restrita aos militantes de movimento negro que lidam com essas questões cotidianamente. Essa mesma obviedade não faz parte do entendimento da maioria dos meus professores e colegas não-negros. Deste modo, dizer o óbvio está sendomotivo de grande contentamento.

Enfim, estou voltando!
Com boa novas...
por partes!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Carta aos Formandos Direito 2010.2 Unifacs - Carta aos não-religiosos de matrizes africanas.


Eis que está chegando um grande momento: minha formatura, o meu bacharelado em Direito. Depois de 5 anos de curso, 1 ano trancado por questões fincanceiras e emocionais, estou na reta final dessa caminhada. Desses anos corridos, poderia relatar e lembrar de muitas coisas passadas, agradáveis ou não, mas me pego tendo pela frente uma discussão que não diz respeito especificamente a mim, mas a todos os religiosos de matrizes africanas.
Fiz uma carta para meu colegas formandos, mas que acredito que interesse a muito mais pessoas do que os míseros 77 formandos de minha turma. Eu podia relatar o que tem acontecido, mas certamente depois de ler a carta não haverá mais a necessidade desse relato, ela é auto-explicativa. 
Ademais, só resta lembrar que a luta contra intolerância religiosa é todo dia. Minha avó de santo foi pra Orun de forma trágica e não falo do desabamento de um prédio, de um terremoto ou tsunami. A tragédia fatal de sua vida foi o preconceito, a intolerência religiosa, o extremo da falta de respeito. Pode até parecer que um fato está desassociado do outro no que diz respeito ao seu conteúdo e momento, contudo, é um engano acreditar que quem ataca uma mãe de santo com biblía nas mãos e divulga jornais com textos infames é diferente de quem se posiciona contra a participação de uma filha de santo em obrigação da solenidade, pela sua impossibilidade de trajar-se de preto como o restante dos formandos.
Redigi a carta não acreditando que a mentalidade de um grupo de brancos, cristãos (universalmente falando) e com poder aquisitivo além do mediano, reveja conceitos: sei que isso não é possível só com palavras, o enfrentamento há de ser mais veemente. Entreranto, não podia deixar passar a oportunidade de dizer um desaforo do alto de minha postura de nobreza ancestral africana.
Segue na íntegra.

AOS FORMANDOS DIREITO 2010 NOTURNO E A QUEM MAIS INTERESSAR POSSA


Eu podia simplesmente esperar que o ano acabasse, esperar que a formatura passasse e pronto. Contudo, eu sempre tenho pretensões maiores quando se trata de discussões pertinentes, trago essa discussão para vocês, futuros bacharéis em direito, alguns, inclusive, já aprovados no Exame de Ordem, portanto, também futuros advogados.
A liberdade religiosa, que inclui a liberdade de crença e de culto, está garantida na Constituição Federal, em seu artigo 5º, sendo, portanto Direito Fundamental.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; [...]
Sei que não está a contento de muitos o fato de ter uma colega formando com traje branco destoando dos padrões do cerimonial e “quebrando o protocolo”. Entretanto, tendo em vista os dispositivos constitucionais supracitados, pretender ou manifestar-se contra a participação de uma adepta de Candomblé ou impor condições que ofendam de tal maneira suas convicções a ponto de impossibilitá-la de participar de qualquer evento nas mesmas condições que os demais, é uma privação de direitos.
É ainda o Artigo 5º da Constituição Federal que traz a inafiançabilidade e imprescritibilidade do crime de Racismo:
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
Talvez muitos se espantem com a abordagem do racismo neste assunto, mas se se espantam é por que certamente estão muito habituados aos seus códigos civis, penais, trabalhistas e processuais, lhe escapando algumas leis ordinárias, mas que estão em vigor e que, como estudantes de direito e concluintes, devemos estar aptos a fazê-las valer (senão, passar na OAB não significa nada). A Lei 7.716/89 define o que vem a ser racismo estabelecendo os crimes resultantes de raça e cor e em seu bojo tipifica a conduta que atente ou crie óbices ilegais a alguém em decorrência de sua religião.
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social.
Pena: reclusão de dois a quatro anos.
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
Tenho ouvido falar de muitas coisas, mas tenho dado pouquíssima importância para evitar me desgastar em um momento que é digno de honrarias e comemorações, que é a minha formatura. Contudo, há coisas que sempre precisam ser ditas, para que uma oportunidade não se perca ou determinado fato tome contornos menores do que o merecido, como se fosse qualquer anedota. Sei que o que está sendo colocado aqui não está sendo recebido por todos nessa lista ou a todos que possam ter acesso a esse email, mas sei também que as pessoas certas o estarão lendo e entenderão cada palavra aqui escrita.
Portanto, se a alguns desagrada o fato de fazer uma formatura com uma adepta de Candomblé, recém iniciada e que, em decorrência de seus preceitos religiosos, participará da solenidade trajada de branco, a Constituição também lhes garante isso:
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
A República que vivemos, que não é nenhuma república platônica, tem também seus objetivos explícitos na Constituição.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Portanto, quem quiser viver uma redoma, em padrões estéticos fechados e estanques, em um Estado com religião oficial, está na hora de arrumar as malas. Não há como estar aqui, sem se adequar à diversidade. Se não quer conviver com diferenças, infelizmente, seu Deus, te colocou pra nascer e viver no lugar errado. Eu é que tenho certeza que Olorum, Orumilá, Obatalá, Olodumarê, Exu, Ogum, Oyá, Oxossi, Oxum, Oxalá e o resto do panteão africano não me fizeram nascer nem estar no lugar errado. Então, não tenho de onde sair, nem de onde deixar de estar. Ou seja, a cada um está reservado o direito de rescindir seus contratos com a promotora de eventos responsável pela organização da Solenidade e receber seus respectivos diplomas na Reitoria da Universidade. Afora isso, não há outra opção. Então, avaliem enquanto está em tempo por que a alternativa de usar a Beca preta ou desistir da Solenidade, não existe.
O que não pode é ficar nas ironias, brincadeiras e comentários sórdidos, inclusive por que é crime:
Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa;
impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou
objeto de culto religioso:
Pena - detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.
Os bons penalistas desta turma deviam saber disso, mas, caso tenham perdido essa aula no 3º ano, aqui estou eu, como boa colega, trazendo-lhes essa revisão às vésperas de Exame da Ordem (apesar de alguns já aprovados precisarem dessa revisão para a vida profissional e pessoal). É muito fácil ser penalista e garantista. É muito fácil ser “constitucionalista de artigo”. Difícil é se deparar com as situações cotidianas e usar o Garantismo e os Direitos Fundamentais da Constituição tal como habitualmente defendem em sala de aula. Estamos terminando o curso e parece que muitos não perceberam que não passamos 5 anos fazendo nenhuma resenha crítica de filme, ainda que alguns exemplos das aulas de penal pareçam ficção científica. Não vivemos em uma realidade e estudamos a MATRIX!!! Se não perceberam isso, ainda dá tempo de correr pro curso de Cinema, Artes Cênicas ou coisa que o valha.
Em última observação, peço que havendo alguma coisa a dizer, sobretudo se quiser manifestar alguma insatisfação com essa situação, o faça diretamente a mim, para além de hipocrisia, não se permitir também a covardia, fazendo tais comentários aos cochichos, de forma vil. Todos estão empenhados em colar grau, ser aprovados no Exame de Ordem, ser juristas ou o que mais o bacharelado em Direito permita, então está na hora de sermos mais éticos ao discutir quaisquer assuntos. Se for pra haver um debate acerca do tema, que ele seja aberto: é o mínimo que suas dignidades exigem.

Atenciosamente,
Gabriela Ramos, Formanda, 5ºB Noturno
Torunjinlê - Omorixá de Ogum – Yaô do Axé Abassá de Ogum
Iniciada em 24 de julho de 2010 pela Yalorixá Jaciara Ribeiro

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Mulher Negra - Reflexu's

Eu tenho orgulho de ser uma mulher negra. Eu tenho kelê, eu tenho a dijina...


Saudosismo de um tempo que não vivi! Os sucessos da Banda Reflexu's me embalam, e o fato de eu estar ainda no colo de minha mãe quando seus hits estouraram, não atrapalham a minha nostalgia. Não deixo de pensar como seria a banda atualmente se ainda existisse. Talvez passasse pelas mesmas pendengas das bandas e blocos afros, mas que, assim como eles, não perdem o brilho.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Ações Afirmativas e o marco histórico das discussões raciais.

Parabenizo cada militante negro que se dispôs a ir pro embate frontal com a lógica sistemática racista em prol da efetivação dos direitos sociais, do princípio da igualdade e da inclusão das negras e negros na sociedade brasileira ex-escravocata. Já alcançamos uma vitória, saimos do silêncio, paramos de discutir pra dentro e fomos colocar o dedo na cara dos verdadeiros opositores. A Política de Ação Afirmativa na Educação Superior veio como um divisor de águas da história brasileira em relação à postura estatal frente aos afrodescendentes esquecidos aqui depois do fim do tráfico negreiro e abolição legal da escravatura.
Não podemos esquecer que desde 1889 os negros trazidos nos navios negreiros e seus ascendentes esperam por inclusão nas políticas públicas e no acesso aos direitos sociais. Acredito que tenha chegado a hora e que nossa Suprema Corte Constitucional esteja sensível a isso.
O Poder Judiciário brasileiro vive um momento histórico ao colocar na pauta de discussões as políticas públicas voltadas à educação da população negra e indígena.

            O STF, corte suprema pátria fez em março do corrente ano uma Audiência Pública com especialistas de diversas áreas do conhecimento para discutir a constitucionalidade ou não das Cotas Raciais que estão sendo implementadas em universidades públicas do país. A proposta foi feita pelo Min. Relator da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 186), Ricardo Lewandowski, que foi ajuizada pelo Partido Democratas alegando a inconstitucionalidade das políticas afirmativas na Universidade de Brasília.
O MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RICARDO LEWANDOWSKI, Relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 e do Recurso Extraordinário 597.285/RS, no uso das atribuições[...] CONVOCA: Audiência Pública para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em matéria de políticas de ação afirmativa no ensino superior. No que tange à arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ação foi proposta contra atos administrativos que resultaram na utilização de critérios raciais para programas de admissão na Universidade de Brasília - UnB. Os dispositivos tidos por afrontados são os artigos 1º, caput e III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II, XXXIII, XLII e LIV, 37, caput, 205, 206, caput e I, 207, caput, e 208, V, da Constituição Federal. [...] O debate em questão consubstancia-se na constitucionalidade do sistema de reserva de vagas, baseado em critérios raciais, como forma de ação afirmativa de inclusão no ensino superior.[...] (ADPF 186, Min. Rel. Ricardo Lewandowski)
Diante da discussão posta, antes mesmo da Audiência, muitos juristas, sobretudo constitucionalistas, se permitiram sair do silêncio latente em que permaneciam quando se tratava desse assunto. Em manuais e cursos de Direito Constitucional passavam pelos capítulos dos Direito Fundamentais Sociais sem abordar o assunto, mas hoje se vêem impossibilitados de deixar passar despercebido pelo clamor do mundo jurídico e dos movimentos sociais que imploram por uma resposta aos questionamentos feitos pelos contrários e favoráveis às políticas afirmativas. Autores como Manoel Jorge e Silva Neto, trouxeram a discussão à baila e o citado jurista diz que:
Defende-se também que a ação afirmativa viola o princípio da igualdade porque contempla discriminação reversa (reverse discrimination). O termo surgiu nos Estados Unidos para criticar a ação afirmativa dos fundamentos de que as atuais gerações não têm responsabilidade com a discriminação praticada no passado. (SILVA NETO, 2008, p. 620)
            Contudo, essa não é a posição unânime de juristas, estudantes, ministros, juízes, leigos e cotistas[1]. Fundamentos históricos, sociológicos, legais, constitucionais e, sobretudo, ideológicos, são lançados à mesa e inseridos nessa discussão que remonta aos 510 anos de história oficial[2] do país, mas que só foi colocado em pauta nesse momento. E é se reportando à história que o supracitado autor, em mesma obra, coloca seu posicionamento: “E recorde-se que a mesma resistência oposta no passado às normas de direito social agora se opõe com relação às políticas afirmativas, seja aqui no Brasil ou nos Estados Unidos.” (SILVA NETO, 2008, p. 620)
Tendo isso em vista, comecei esse ano o meu trabalho de conclusão de curso em Direito colocando mais lenha na fogueira da discussão das ações afirmativas tendo em vista sua relevância associada ao momento ímpar em que o país vive na discussão de políticas públicas voltadas aos grupos sociais vulnerabilizados e marginalizados[3] pela história e que não foram, posteriormente, reparadas pelos danos causados pelo próprio Estado em momento histórico passado, mas não remoto.[4] Portanto, no trabalho que me dispus a elaborar, pretendo fazer um apanhado da discussão feita, colocando em foco o constitucionalismo brasileiro, sobretudo no que diz respeito aos direitos sociais, destacando os aspectos normativos, especialmente as normas programáticas frente à reserva do possível.
Espero trazer mais novidades e melhores informações da minha pesquisa.



[1] Termo vulgarmente utilizado para referir-se aos estudantes que ingressaram pelo sistema de cotas das ações afirmativas implementadas nas universidades públicas do país. Ou seja, quem entrou pelas cotas, chamar-se-á, vulgarmente, cotista. O termo é cotidianamente utilizado, apesar de não ter sido impregnado de preconceito, visto que foram os próprio estudantes ingressantes pelo sistema de cotas que adotaram o termo e hoje o utilizam como forma de auto-afirmação enquanto oriundos de colégios públicos e em sua maioria, negros, e não como mendicantes intelectuais.
[2] Oficial por que é a História que está nos livros, mas não necessariamente a única. Afinal, antes do “achado” de Pedro Álvares Cabral, aqui era terra de Índio e “todo dia era dia de índio”, como canta Jorge Ben.
[3] No sentido literal de colocados À margem da sociedade como se dela não fizessem parte.
[4] É recente, posto que não é remota, a história da escravização dos africanos e afro-descendentes no Brasil, além do extermínio e apropriação indevida das terras indígenas. Isso pode ser afirmada sem receio de pecado, afinal, se passam mesquinhos 188 anos da Independência do Brasil do colonizador Português e apenas 121 da abolição da escravatura.

domingo, 11 de abril de 2010

A COR DO AMOR

E o amor tem cor??? A prioristicamente, qualquer um responderia que não. Mas eu digo que sim! E digo que sim repassando mentalmente as discussões que ocorreram recentemente em uma lista virtual sobre as relações interraciais. 
O que faz um homem ou uma mulher pensarem no seu par ideal para manter uma relação? Todos aqueles adjetivos clichês aparecem: bonito, inteligente, educado, esforçado, trabalhador, militante, amoroso, elegante, etc. E optar por se relacionar com o outro nada mais é do que dizer que aquela determinada pessoa tem as características que você quer na medida em que você precisa, mesmo que depois de iniciada a relação você perceba que caiu em uma furada e a embalagem trazia um produto insoso ou mesmo amargo.
De toda sorte, por que homens negros, sobretudo os em melhores condições financeiras e sociais, optam raramente por se relacionarem com mulheres também negras? Talvez por que esses ideiais de beleza, inteligência, elegânciae até do amor mais romântico estejam desenhados em esculturas de cores claros, traços finos e cabelos lisamente sedosos. 
E com certeza, não irá faltar quem pergunte: e o amor? O amor não conta? Mas e eu respondo com umas outras perguntas: e o que é o amor? O que faz alguém se apaixonar por outrem se não a adimiração e idealização do que lhe é aprazível no outro, o conforto pessoal e emocional que aquela pessoa lhe proporciona e todas as outras flores dessa primavera sentimental?

Dizer que o amor tem cor não significa dizer que negras/os só devam se relacionar com negros/as e brancas/os só devam se relacionar com brancos/os por que a ninguém é dado o direito de simplesmente mirar o seu ofá de cupido apenas para os corações de mesma raça numa tentativa desesperada de evitar as relações interraciais. Mas se Kabunguele Munanga tanto nos trouxe acerca da descolonização do conhecimento, não podemos nos furtar dessas descolonização, inclusive, nas nossa relações. Por que eu, enquanto candomblecista e ex-cética não acredito em coincidências e certamente isso não é privilégio só meu.
O que não dá é pra criticarmos Ronaldo, Robinho e outros jogadores de futebol e pagodeiros por que eles saem da favela pra ser riqueza e fama e ao lado de casa um deles posam mulheres brancas enquanto quem está aqui embaixo discutindo exatamente esses padrões escolhidos por eles para carregar como mais um troféu, quando se está fazendo a mesma opção, ainda que não para ter um troféu, mas para ficar confortável no transitar desse ou daquele determinado espaço... ou mesmo por que se quer viver um romance e nossa literatura ainda anda pobre de princesas negras.

Podemos viver o amor que quisermos, desde que sem esquecer ou negligenciar os refenciais que cansamos de publicar em textos, músicas, poemas, discussoes virtuais e tudo o mais que cansamos de gastar em escrita e voz. Além de todos os nosso algozes históricos, temos nossos espelhos e nossos ecos.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Igbadu - A Cabaça da Existência

Durante a semana que me ative À leitura desse livro  a todo momento minha sensação em relação a ele mudava. Por vez sentia um conforto em ler estórias nagôs de forma amarrada como se tivessem uma sequência cronoógica exata, o que na nossa tradição oral africana é difícil de sincronizar. No entanto, esse mesmo  fato me causava certa desconfiança por perceber que o autor se excedia nas "amarrações" e tudo se tornava por demais romantizado.
Mas essa disparidade de sensações foi apaziguando ao passar das páginas à medida que eu fui ganhando discernimento e separando o joio do trigo.  Algo interessante e que merece enorme destaque é o tratamento dado a Exu que, apesar de outros diversos autores candomblecistas tentarem desmitificar sua demonização, aqui, Adilson de Oxalá (ou Awofá Ogbebara), traz as histórias de ira e vingança do digníssimo orixá com seus precedentes, ou seja, mostrando o porque de cada atitude tomado por Elegbara. Acredito que até muitos leigos em  matéria de religiões de matrizes africanas entenderiam o lugar fundamental desse orixá sem tomá-lo pelo vilão do Axé.
Mas já caminhando para a conclusão do livro, fui novamente surpreendida e dessa vez as surpresas me deixaram não só estarrecidas como decepcionada com tudo que eu havia lido até aquele ponto.

"Xangô era realmente muito belo. Seu rosto, de feições finas, era adornado por olhos amarelados como o mel e, quando seus lábios bem delineados abriam-se em generoso sorriso, deixavam à mostra dentes perfeitos, da cor do marfim." 

Essa passagem está no livro em parágrafo posterior aos que antes colocavam o citado orixá como o símbolo da beleza e perfeição estética masculina o que implica entender que para ser o símbolo beleza, permanecemos recorrendo aos traços finos e olhos claros da descendência européia. Ou alguém que leia um trecho desses consegue imaginar um homem africano?

No final das contas, o que parecia ir razoavelmente bem, se desmancha, O autor fez com as mãos e desfez com os pés e o que podia ser um best-seller da história africana, se tornou mais um livreto de versões de mitos nagôs.
 


sábado, 20 de fevereiro de 2010

RELATOS DE (PÓS) CARNAVAL - Por que no Ilê não (deveria) sai(r) branco

O Ilê surgiu com a proposta de dar uma resposta aos blocos carnavalesco que não permitiam que negros participassem de seus blocos. No tempo das mortalhas e mamãe-sacodes pra trás pedia-se, inclusive, foto para associar-se aos blocos e cada "ficha" passava por avaliação a fim de se escolher quem podia e quem não podia entrar em determinada agremiação. 
Para além disso, e principalmente, o Ilê e outros blocos afros surgiram para elevar a estética corporal e cultural dos negros em diáspora jogados aqui nesse grande quintal de América. Portanto, se é pra falar e mostrar estética e cultura Afro, nada mais justo que nós mesmos o façamos. Afinal, nós não precisamos passar procuração pra branco nenhum, como se já não bastassem as indevidas apropriações que Danielas Mercurys e Cia Ltda fazem por ai.

Se quiser curtir cultura afro, é só descer pra Barra que nossa amada Dani diz que a Cor dessa cidade é ela, o canto dessa cidade é dela e ninguém disse o contrário. Se quiser curtir candomblé elétrico, você também pode ir reverenciar Oyá chamando egun na rua... "oyá te te...oyá te te, oyá.."
Assistimos Chiclete, Ivete, Asa e tudo o mais da pipoca, por que vocês não podem assistir o Ilê do lado de fora também? A gente sente os empurrões o tempo todo e vocês não podem?!
Não sai branco no Ilê por que se a gente dá o dedo, vocês tomam o corpo, os turbantes, os tambores e o resto todo.

Cada um no seu cada um, deixe o cada um dos outros. Já chega de apropriação da nossa cultura.
Agradecemos muito a reverência de vocês ao que produzimos, mas antes de reverenciar, vocês vaiaram bastante e agora que há uma possibilidade de rentabilidade, também não dá pra passarmos para as suas mãos.

Além disso, apesar de todos os ganhos de espaços que tivemos, nossa cultura ainda é tido como exótica. E nossas roupas coloridas e turbantes enormes não são fantasias de carnaval de marchinha pra tirar foto e achar graça no dia seguinte. Nossa roupa é "a simbolização do negro africano", é o resgate da nossa ancestralidade e é a repatriação que não pudemos fazer adentrando navios (ou aviões) de volta pra África. É a repatriação no nosso coração palpitante e nossas negras peles arrepiadas, o resgate da musicalidade africana nos tambores afro-brasileiros.

Certamente qualquer branco que leia tudo isso achei que há um tom muito passional para falar de roupas coloridas. Se é isso que você sente, é justamente por isso que você não pode sair no Ilê. Por que os pretos sabem do que estou falando e é isso que o fazem pertencentes ao tapete negro na avenida. Pertencimento que branco nenhum sente nem vai sentir. Se você entende e sente isso, mesmo tendo pele clara: hora de acordar e despertar pra sua identidade.

Só pra ficar mais elucidativo, vamos rememorar aqui o Gandhy. Olhe quanto filho-de-papai desce de seus apartamentos da Graça pra vestir a roupa branca e "pegar mulher" trocando colar por beijo??
O tapete branco aumentou, mas a essência tá se perdendo por causa deles, os brancos que não sabem nem por que foi que o Gandhy surgiu e enchem o pescoço de diloguns e monjilós brancos e azuis comprados em feiras misturados aos colares profanos pra trocar por beijo. Pergunte a algum deles o que é um Padê pra se perceber como não tem dimensão do que é a história daqueles antigos associados/fundadores. Ninguém vai lá dar de comer a Exu e a avenida vem trazendo a cada ano um número maior de corpos inflados a bombas em busca de desordem e Elegbara não deixa por menos: o tapete branco está a todo tempo sendo manchado de sangue.

Se querem mais exemplos, vamos ver o que aconteceu com o Comanche. Confesso que não acompanhei como se deu a história e os desdobramentos de desgastes da Associação, mas fiquei estarrecida ao ver o trio passando com uma banda de pagode e 3 mulheres de tanguinhas "todas enfiadas" simbolizando o povo indígena, mas precisamente, os Comanches. Acho que me deu até uma ponta de ciúmes ao vê-las quebrando até o chão, queria que isso ficasse só pra mim e mais umas dezenas que mulheres que não precisam representar a cultura indígena no carnaval.

Isso tudo mostra o quanto é difícil resistir culturalmente no pseudo-carnaval-da-diversidade. No Ilê não sair branco é também mecanismo de defesa e, sobretudo, resistência. 
No carnaval do Ouro Negro, a preciosidade é de Aluvião.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

RELATOS DE CARNAVAL (II) - Guiguio sauda Léo Santana

E lá vem o tapete negro descendo a avenida sete, passando pela Casa de Itália. Lá vai o Parangolé tocando o hit do carnaval e, de repente, no meio dos tambores, se ouve Guiguio gritar: "É isso ai, meu irmão. Parabéns pra você, Léo que está chegando com tudo trazendo o som do guetho para as paradas de sucesso do carnaval. Rebolation também é som da negrada!!!"
Certo que não foram exatamente essas as palavras, mas o sentido está perfeitamente descrito. O que se pretendeu foi elogiar e lembrar que aquele gostosão que arrasta a massa rebolando também é parte do Ilê Aiyê, do mundo negro, que ele saiu de alguma quebrada para estar ali em cima daquele caminhão cheio de caixa de som e que para tanto teve muito que suar.
Achei interessante, para além do que foi dito, a espontaneidade com que Guiguio se pendurou na grade do seu trio para acenar e saudar aquele jovem preto que tava lá do outro lado "no rebolation tion tion". E depois, só aplausos, inclusive os meus!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

RELATOS DE CARNAVAL (I) - Pipoca com Chiclete

Segunda-feira de Carnaval, circuito Osmar, bloco desce, bloco sobe e o Camaleão passou levando seus ricos foliões que desembolsaram mais do que eu ganho no mês pra passar 3 dias ao som de Gu dá dá com a cara cheia de protetor solar e feição apática.
E olhando não tem como não perceber que quem curte De verdade o Chiclete é quem está ali beirando ao corda, tomando empurrão e revidando com uns socos e alguns logo logo levados pela rótamo, rondesp, caatinga serrena... qualquer da roupa marrom em sua mais variadas tonalidades e níveis de truculência.
Chiclete volta e eu lá de cima do apartamento, olho pela janela e só vejo uma fileirinha de abadás laranjas espremida em meio a uma massa. Sim, a pipoca engoliu o chiclete!!! Acho que foi a cena mais linda e mais emblemática que vi em todo o carnaval. A massa excluída respondendo à altura e espremendo aquela massa pálida e sem fôlego, mostrando de quem é a cidade e de quem (pelo menos) deveria ser o carnaval.
Seria uma delícia de se ver se, logo também não se pudesse notar que a PM resolveu trabalhar de cordeira do Chiclete posto que fez um nada discreto cordão de isolamento entre o bloco e a pipoca.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

21 de Janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Uma homenagem a Mãe Gilda de Ogum, que representa todos os adeptos de religiões de matrizes africanas que passaram e passam por situações de opressão no exercício de sua fé. Esse foi o fundamento da edição da Lei que decreta que o dia 21 de Janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
Apesar do episódio emblemático que deu origem à data e que é apenas um dos exemplos dos muitos ataques que os religiosos de matrizes africanas passam, combate à intolerância religiosa exige que façamos uma reflexão minuciosa no nosso dia a dia.
Certa feita um amigo me perguntou por que eu não aceitava os folhetos que os evangélicos distribuíam. Apesar de haver quem entendar ser “intolerância às aversas” (esse negócio de preconceito invertido pegou mesmo!!!), não o é. O fato é que, ao distribuir aquele folheto, aquele religioso cristão está querendo me vender o Deus dele e Deus não se vende, pelo menos não na minha religião que é a religião dos escolhidos. E entendam por escolhidos todos aqueles africanos em diáspora (ou não) que sentem e tem a presença espiritual advinda de um ilê, centro de mesa branca, abassá ou o que o valha. Os escolhidos, para nós, não são os salvos do juízo final e sim os prestigiados pela herança africana ancestral.
De todo modo, voltando ao assunto, a questão é que eu não preciso daquele folheto se eu não estou à procura de um Deus nem de uma salvação, posto que já estou salva. Na verdade, acho insulto. No momento em que você tanta convencer o outro da perfeição e imprescindibilidade de seu Deus você está negligenciando e menosprezando toda e qualquer outra forma de manifestação de crença no divino. A propósito, eu não ando distribuindo contas por ai.
O dia 21 de janeiro representa cada conta que colocamos no pescoço, cada sexta-feira que vestimos branco, cada benção que a gente pede e cada cristianização que a gente rejeita. Afinal, todos nós viemos de um histórico de cristianização natural no país em que nascer e ser batizado faz parte da trajetória de qualquer criança e a opção religiosa só vem depois da crisma, quando se faz a primeira decisão: continuar o não católico; e, só depois, se pergunta e se dá a oportunidade de experimentar outras faces do divino.
Se Jesus Cristo morreu para a redenção de seus filhos, Mãe Gilda de Ogum morreu em prol de nossa libertação mental das garras das instiuições e sociedade racista e perseguidora das religiões de matrizes africanas.

Que Ogum mesmo esteja conosco, abrindo nosso caminhos.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Haiti – suas crises também são minhas

Como africana em Diáspora, tanto quanto os afro-haitianos, cada cara de dor estampada nos tablóides me causa um incômodo desconsertante como quem acaba de ver um parente passando fome e está sentado à mesa posta e farta.
Mas não é a dor de ver o sofrimento e desespero deles, é o desconforto de quem não está fazendo nada diante daqueles açoites que marcam a carne ainda hoje.
O que aconteceu no Haiti pode ter sido catástrofe natural, mas o tratamento pós-desastre é que nunca vai ser comparado ao que se daria a qualquer terra loira européia que tivesse passado por algo parecido. Afora as explicações cientifissíssimas que foram dadas pelo pastro norte-americano que associou a desgraça haitiana a pactos com o demônio em prol de sair das algemas da colonização francesa. E o Cônsul? Macumba amaldiçoou aqueles povos e as religões de matrizes africans mais uma vez são responsabilizadas pelos males do mundo à revelia de seus praticantes. E Arnaldo Jabor? Povos primitivos e bárbaros. Primitivos, sim, posto que primitivo é o que vem primeiro e somos mesmo os primeiros habitantes desse mundo e toda linhagem da raça humana de nós surgiu (vou acreditar que ele usou o termo nesse sentido). No entanto, bárbaros não somos, nem nunca fomos, afinal, esse não foi o povo deorigem germânica que invadiu o Império Romano séculos atrás? O não enfadonho e intelectual Jabor devia saber disso, sobretudo por que esse povo tá mais lá pras bandas do sangue dele, do que do nosso.
Todo dia um vídeo, uma foto, uma notícias e uma dor nova. E os braços atados, como doem. Doem como de os ossos de meu coração invertebrado, de repente, estivessem torcidos.
Doações, cartas públicas de solidariedade, notas de repúdio ao Cônsul, adoção de crianças órfãs, embarque para ajudar os feridos e desabrigados: tudo em plena validade. Só não sei do despertar do amanhã na História desse país. Aquele a quem, depois da exploração, só restou o desprezo da comunidade internacional, agora tem sobre si os olhos do mundo para ver a sua derrocada fatal.
E eu?
No âmago da minha inutilidade, choro!
Ou:
penso no Haiti, rezo pelo Haiti!
Isso por que suas crises são tão minhas que, como ele, também não sei pra que lado vou.

domingo, 17 de janeiro de 2010

E quem é mais militante que ele?

Dormi pensando naquela imagem, a imagem de meu velho pai. Aquela pessoa por quem durante muito tempo não sabia o que sentia, mas acho que não sentia nada… a indiferença.
De repente vi bulinar aqui dentro um amor que não sabia que sentia ou talvez tenha surgido agora, por que é forte como nunca tinha sentido antes por ele. Talvez o orgulho e a insistência dele em um bom relacionamento tenham fomentado isso. Não sei ao certo, mas o fato é que é isso: um amor muito grande. Talvez isso causasse estranheza em qualquer pessoa posto que amor paterno é quase sempre natural e coloco o “quase” por que eu mesma já estou nessa exceção.
Só sei que ontem acordei feliz e tranquila como uns bons banhos de folhas e outros ebós têm me permitido ficar. Me planejei toda e, nos meus planos, não ficou de fora a ida ao Shopping comprar um presente lindo para meu pai que há anos não presenteio. E apesar de parecer normal, tendo em vista ser o aniversário dele, se tratando de nós dois, não é. Isso por que, sendo de veneta como só eu sei ser, só dou presentes a quem quero, quando quero e se quiser muito. O que acaba me fazendo ir a aniversários de familiares de mãos vazias e, num domingo qualquer de agosto, aparecer na casa de uma prima com um perfume que achei que seria a cara dela, mesmo seu aniversário sendo em janeiro. (e talvez em janeiro eu chegue de mãos vazia!!!)
Enfim, programação feita e cumprida, lá vou eu e meus contreguns pra evitar carregos alheios e um belo presente em mãos. Encontro irmãos, tios, primos, meio mundo de parentes que falam comigo como se eu fosse velha conhecida e ainda dizem sentir saudade. Fico feliz, mesmo sabendo que metade é falsidade e a outra é loucura. Mas eu gosto, gosto do clima familiar (que inclui, obviamente, a já citada falsidade), gosto daquele pagodão rolando no som, homens, mulheres, crianças e as véias fogosas todas quebrando até o chão. Uma delícia!!!
Saí de lá a contra-gosto, por causa do horário e pela falta de um carro que me atormenta. Queria ter ficado pra assistir mais um pouco daquele sorriso cansado de meu pai que, mesmo fadigado, não conseguia esconder o contentamento em me ver envolvida com todos. Por trás, algums outros motivos dignos da mais plena felicidade.
Espero que ele tenha feito essa reflexão, mas acho que não o fez: o fato é que lá, diante de mim, em meio ao pagodão das véias fogosas, estava um homem completando 50 anos, com 6 filhos que não foram perdidos pela marginalidade, nem para uma bala achada de algum revólver policial, com um diploma de Bacharel em Direito em mãos e às vespera de fazer sua prova da OAB. Ali não estava só aquele Geraldo, meu pai e que eu tive diversos impasses durante os 21 anos de minha vida. Ali estava o homem preto da comunidade de itapuã, que subia e descia descalço para a praia, que tem 5 irmãos que alcançaram, no máximo, o ensino médio. Ali está o homem que cresceu com os primos de milhares de graus que nunca tiveram nenhuma perspectiva de adentrar a Academia por que sequer têm a verdadeira noção do que aquilo significa, qual sua importância ou razão de ser e até acham que aquilo não é pra eles: preferem suas redes de pesca, suas barracas de praia, seus subempregos e ai se vai a perpetuação da marginalização dos nosso negros na sociedade dos diplomados brancos.
Um homem negro de 50 anos estar vivo, por si só, já é grande motivo de contentamento diante das intempéries pelas quais nossos negros e negras têm passado, sempre achando quem lhe aponte o dedo, senão uma arma.
E um homem negro, aos 50 anos conseguir realizar seu sonho de ser Advogado é de se tomar por referência, inclusive por que, ele esteve na vanguarda de seu tempo já pelo simples fato de ter sonhado com isso e mais ainda por ter percebido que essa podia ser uma realidade palpável.
Mas ninguém mais precisa toma-lo como referência por que ele já o é para todos aqueles que estiveram do seu lado na boêmia juvenil pelos bares de Itapuã, para seus irmãos, seus sobrinhos, filhos e até seu neto de 2 anos (que, no tempo certo, vai entender a dimensão disso).
E no final de tudo, ele é mais militante do que qualquer delegado das plenárias do CONNEB, do que qualquer conferencista do CONSEG, do que todos os secretários e ministros que passaram pela SEMUR, SEPROMI e SEPPIR. Isso por que foi ele quem abriu o universo de possibilidades de todas aquelas pessoas com quem tanto ele subiu e desceu e estavam ali naquele pagodão bebendo, não o seu defunto, mas sua vitória, sua satisfação, o novo homem que se tornou, com direito a beca, colação de grau, anel no dedo e choro, mesmo tendo adquirido o hábito da leitura lendo jornais velhos achados na feirinha de itapuã com seu peculiar cheiro de peixe e mar.
Subimos e descemos discutindo tudo que achamos pertinente e nos achamos grandes militantes, mas mal sabemos qe os militantes de verdade estão ali do lado, na labuta, pra sair de algumas estatísticas de mortalidade, violência, pobreza, miserabilidade, analfabetismo, sub e desemprego para entrar nas estatística que tanto discutimos nos GTS de nossos infidáveis encontros e conferência.
Em homenagem a meu pai: José Geraldo Ramos, da comunidade de itapuã, 50 anos, bacharel em Direito, pai de 6 filhos vivos e sem passagens na polícia.
In memorian a minha mãe: Gildélia Batista Pires, da comunidade de Castelo Branco que a vida foi ceifada pelo destino enfadonho, mas que foi, durante os mais de 20 anos de relacionamento, a mulher negra que militou mais do que meu pai e, inclusive, também é grande responsável pelo se sucesso, mas que não teve tempo de escrever seu pedacinho na história.